quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

“SÓ PODIA SER MULHER”




Da série "reflexões de Valteno", um artigo sobre o machismo. (Com permissão do autor)

Com relação a pequenos deslizes no trânsito, muito se ouviu, e o pior, muito se ouve, pelas avenidas, vielas e logradouros da cidade, - quiçá do Pais, a sentença bem logo vi, só podia ser mulher.
Porém, aqui vai uma constatação bombástica, - os machistas não são apenas estúpidos, são míopes também. O difícil é precisar se, neste ponto, são míopes porque são estúpidos ou o contrário.
Tempos virá em que toda a sociedade ocidental será orientada, na educação formal, a conhecer-se a partir do estudo da neurolingüística, por via do que melhor e mais amplamente conheceremos as nossas dimensões antropológicas (homo somaticus e homo psiquè), as nossas pontencialidades e, por conseguinte, as nossas limitações.
Tal como haveremos de buscar ponderar os direitos e deveres nossos, conhecer as nossas limitações é tão ou mais importante quanto conhecermos as nossas potencialidades.
No que diz respeito ao machismo, que tem raízes históricas profundas no alvorecer da nossa civilização ocidental, haveremos de reconhecer que, em uma sociedade onde só quem produzia, administrava e decidia era o macho, o papel reservado à mulher não iria além de objeto de reprodução, e de mão-de-obra doméstica. Tal circunstância deixou sinais marcantes na linguagem, no idioma português por exemplo, que se formara lá pelos idos dos séculos I a três desta chamada Era cristã. Isto, claro, porque numa sociedade onde a mulher não tem voz, não se faz agente dos processos produtivos, está restrita à cozinha e à cama, nenhum reflexo do seu pensar, do sentir, dos seus ideais hão de ficar gravados nos expedientes identificadores da cultura dessa coletividade.
Não é nenhuma novidade que a nossa sociedade padronizou atitudes e comportamentos com relação a tudo ou quase tudo aquilo que constitui lida cotidiana – cor rosa não é coisa de homem, tal lugar não é próprio para mulher, quem faz assim é mulher, agir assado é coisa de homem.
É bem certo que o mergulhar nessas nuances nos fará melhor compreender o resultado comportamental ulterior, que se apresenta a nossa frente, satisfazendo a certas expectativas ou as frustrando. Mas é sobretudo correto afirmar que o machista, insensível em sua ignorância, míope em seu fascismo, estúpido em sua indolência, é absolutista em tudo, não se faz capacitado a processar análises sociais e históricas; assim, não enxerga as relações sociais a partir de uma panorâmica diacrônica, apenas toma os fatos como pontos sincrônicos dissociados do todo, da História, e da cultura.
Todo mundo vê que as mães são as maiores reprodutoras do machismo, produto este mais apanhado e intensivamente utilizado pelos homens. Afinal, apesar da acentuada inserção da mulher no mercado de trabalho hoje, os filhos, ainda, são mais largamente orientados e educados por suas genitoras; isto é, passam mais tempo de suas vidas com as mães do que com seu pais, e é delas, portanto, que recebem a maior carga de mensagens formadora da sua personalidade, do seu caráter, do seu imaginário.
De tal modo as mães tragicamente reproduzem o machismo, confinando as sandrinhas em suas cozinhas, nas atividades domésticas, enquanto os paulinhos são convidados a ganharem a rua, para jogar sua bolinha.
- Paulinho, saia daqui menino dessa cozinha, vá jogar sua bola...
Enquanto a irmãzinha Sandra lava prato e varre a casa, de tal sorte perpetua-se o câncer do machismo, sutil e sistematicamente, entre nós. Enquanto a pequena Sandra ajuda a mãe nas atividades domésticas, “prendando-se” (preparando-se) para ser mais uma dona de casa (esposa de mais um machista) e mãe de mais uma sandrinha futura, o alegre Paulinho desloca-se todo faceiro para o campo de futebol, em um veículo sémi-novo, com seu pai, que não raras vezes, tem deixado o filhinho voltar para casa conduzindo o automóvel, após o mesmo ter completado doze anos de idade.
Assim, embora Sandrinha seja um ano mais velha que o irmão nunca lhe foi permitido “pegar” no carro do pai. Mas Paulinho já está craque no volante!
Verdadeiramente, não se caindo na vala comum da irreflexão, não fica tão difícil entender e compreender que, finda a adolescência, os paulinhos serão realmente peritos condutores, ademais corajosos e audazes ao volante; ao passo que as sandrinhas, porque somente vão ter em seu domínio a direção de um automóvel da auto-escola, quando já na faculdade, na fase adulta, serão as motoristas por vezes incautas, titubeantes e mesmo negligentes.
Mas como poderia ser diferente? Senão, invertam-se os papéis. Ponham-se os paulinhos nas pias e nos fogões, e as sandrinhas, desde cedo, no volantes(...)
 
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