quinta-feira, 18 de junho de 2009

Das injustiças cometidas no cotidiano e das crises existenciais


Por mais que não queiramos enxergar a realidade ou vendar os olhos para as verdades que teimam em aflorar cotidianamente, somos perseguidos por “almas vivas” que nos atormentam em pesadelos de consciência, somos violentados diuturnamente por injustiças cometidas no afã do beneficio unilateral perpetradas por nossos timoneiros ou seus diligentes seguidores. Nesse caminhar “trôpego”, nesse torpor embaraçoso, a voz, embargada, violada pelas circunstâncias, teima em falar em nome dos esquecidos, dos maltratados e dos jogados na sarjeta pelo poder público.
As pequenas oportunidades de se fazer justiça com os mais pobres, com os desprovidos, ou pouco providos de recursos para o seu sustento, se apresentam a todo instante para nós que gerenciamos órgãos públicos. No entanto, as grandes oportunidades de, como se diz no jargão popular, “provocar mudanças significativas com apenas uma canetada”, são reservadas aos executores e legisladores da coisa pública. Por conseguinte, nessa vida política metamorfosica e de via dupla, os semideuses são aqueles que detêm a última palavra sobre distribuição de recursos, empregos e favores que muitas vezes interferem na sobrevivência de famílias inteiras.
Um episódio recente, nas plagas pocoverdianas, emoldura esse arremedo redatorial com pretensões filosóficas e almeja corroborar as palavras iniciais. Como cidadão nascido, criado, habitando e vivendo o dia a dia do burgo, declaradamente apaixonado pela feira semanal, na qual religiosamente, aos sábados, acordando no cantar dos galos e chilrear dos pardais que infestam nossos telhados, vivenciei a “mega-mudança” da feira para um novo e moderno mercado hortifrutigrangeiro com pretensões metropolitanas, mas, que, guardando as devidas proporções, esteticamente é uma beleza de freqüentar. Pois bem, sem mais delongas, no primeiro dia de funcionamento do nosso “CECAF”, como fazia a 20 anos no antigo local, lá estava eu, “cedinho, cedinho”, para cumprir a minha “via-crucis” de homem casado que, numa obrigação prazeirosa, tirando de lado a falta dos “vinténs” no final do mês, perambula entre as barracas de carne, frutas, verduras, requeijão, temperos etc. Primeiro, como é de costume, as carnes, e, eis que ao procurar o machante que compro carne de porco à 15 anos não o encontro. “Zanzei”, “zanzei”, por entre as bancas novíssimas, escutando o zumbindo das novas serras elétricas, vendo de forma orgulhosa as balanças digitais, me perdendo no emaranhado de frequeses que mais admiravam do que compravam e, nada de “Dito”, nada do “cortador” de carne de porco. Continuando o périplo, pergunto a um e a outro, alguns me fazem a mesma pergunta, mais ficamos todos com a mesma resposta, nada de “Dito”. Não me dei por vencido, procurei fazer uma investigação criteriosa para saber porque alguém que a 15 anos se utiliza da sua profissão para tirar o sustento de sua família, tinha, de repente, parado de exerce-la.
Pasmei ao ouvir uma série de denuncias, indagações e reclamações de alguns feirantes, advindas da forma, pouco ortodoxa e justa de distribuição dos locais, das bancas, preços, aluguéis etc. Mas, pensei, “se Cristo não agradou, nem agrada a todos, quiçá os mortais”. No entanto, naquele momento, e nos momentos vindouros, confesso que a maior preocupação era com o que estava acontecendo com o “cortador oficial de porco”. Apurei alguns fatos estarrecedores que “carecem” de uma investigação mais profunda. Pois bem, segundo alguns “machantes” e gente do meio, Dito não tinha conseguido uma banca, só quiseram dar-lhe a metade de uma para que este pagasse a metade do imposto pago pelo uso do bem público. Outros afirmavam, categoricamente que, as bancas de carne foram distribuídas de forma injusta, sendo que apenas algumas pessoas controlam a maioria das bancas e outros, que receberam o beneficio prontamente alugaram, sublocaram o bem público e agem como verdadeiros proprietários. Ou seja, “tudo continua como dantes no castelo de Abrantes”, o mercado de carnes de Poço Verde continua sendo controlado por pessoas que a muito tempo monopolizam o processo de compra, venda, abate e corte de bovinos na nossa terrinha.
Após cinco ou seis semanas da tão sonhada mudança, transferimos as mazelas teóricas e nos escondemos nas belezas de um novo e moderno edifício, mas perdemos uma oportunidade de fazer justiça com aqueles que realmente necessitam da mediação da administração pública. Assim, torno a encontrar o “cortador de porco” nas ruas da cidade e este me diz: - Na próxima feira vou esta cortando porco e metade de uma novilha, espero você e outros fregueses para mim ajudarem, pois aluguei uma banca no novo mercado. Pergunto, como? E este me responde: Aluguei uma banca por 35 reais e vou pagar mais 40 reais pelo uso aos gestores. ... Lágrimas de indignação marejaram meus olhos, ânsias de pura emoção provocaram um rebuliço interior diante da constatação inequívoca de mais uma injustiça cometida... Estão sublocando o novo mercado e, pessoas do povo, que a anos exercem sua profissão com dignidade, foram alijados do processo de distribuição de espaços.
A indignação, o torpor, o sentimento de impotência, a percepção de um mundo cruel e injusto vislumbrado nas práxis mínimas, e o desgosto se avolumando na medida em que se percebe que todos sabem, todos vivem e respiram um aroma de conciliação pernóstica enquanto nos calamos e nos tornamos iguais, cúmplices dessas injustiças porque, de certa forma, sabemos e aceitamos o que acontece. Juizes, executores, legisladores e gestores formam uma casta de beneficiados e nós, que gravitamos em torno desse sistema, como uma categoria intermediária, entre os poderes e o povo, somos amordaçados, controlados, e seremos amaldiçoados eternamente por não vivermos o momento presente, por contermos sentimentos de busca por justiça social, por negligenciarmos e escamotearmos a verdade em nome de um falso sentimento de segurança para os considerados “nossos”.
Invoco, concluindo com profundo lamento, as palavras finais da carta de Pero Vaz de Caminha, a El Rei D.. Manuel, primeira de uma nação invadida e prestes a se construir, que referenciou a prática de se fazer política em “terras brasilis”:
...E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha
In: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html

Edição de base:
Carta a El Rei D. Manuel, Dominus, São Paulo, 1963.
 
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